Ela lava a louça

Quando se sente angustiada, chateada, fraca, desanimada. Quando briga com os pais, lê uma notícia ruim no jornal ou vê imagens terríveis na televisão. Se briga com o namorado, tira uma nota baixa, não consegue concluir algum trabalho, é para a pia que ela vai.

Quem olha as mãos delicadas com unhas - quase sempre - bem feitas não acreditaria se ela contasse que esfregar os pratos, copos e talheres a faz tão bem.

Ainda pequena observava a empregada usar esponja e sabão para deixar a louça da casa impecável. Gostava de assisti-la enquanto fingia prestar atenção na conversa que tinham. Ela sabe que era alguma coisa sobre filhos, namorados e chuvas muito fortes.

Depois, escondida, checava prato por prato, copo por copo, talher por talher, panela por panela, em busca de manchas ou arranhões que tivessem sido deixados. Quase nunca os encontrava e, quando encontrava, seus olhos chegavam a brilhar. Guardava-os de volta e quando não tinha ninguém em casa os lavava novamente, até que ficassem impecáveis.

Algumas vezes um ou outro restinho de comida grudava ali e tomava um tempo a mais para ser retirado. Isso a irritava bastante, mas ela era persistente na atividade. Ainda é. Ela aprendeu que muitas daquelas manchinhas só saem com um bom esfregão de pano de prato.

Lavar a louça com o rádio ligado então, é um prazer impar! Cantar tomando banho ou secando o cabelo não chegam nem perto da felicidade de fazer passos desajeitados enquanto o sabão molha o chão e suja a roupa, muitas vezes fazendo do copo um microfone frágil, que ao menor descuido pode cair e levar junto com seus cacos a ilusão de uma plateia animada e excitante.

Assim, travando diálogos imaginários com seu inconsciente, cantando canções compostas no calor do momento, ou mesmo quietinha, apenas observando o movimento das mãos e da água, ela lava a vida.